A prática do desabafo é a arte de derramar a alma perante o Senhor, colocando para fora todo e qualquer
melindre, mágoa, ressentimento, tristeza, queixume, inquietação, ansiedade, medo, indignação desmedida, revolta e coisas assim. Dá-se mediante uma abordagem firme e corajosa na presença de Deus de problemas reais, de problemas de gravidade exagerada e de problemas inexistentes. O desabafo bem feito interrompe uma situação de intensa e contínua amargura.
O desabafo é tão saudável quanto o lazer. O excesso de ansiedade, provocado pelo acúmulo de problemas, dificuldades, decepções, frustrações e sofrimento, desmantela qualquer esquema de felicidade pessoal. Os casos mais graves podem levar às drogas, podem causar distúrbios emocionais e doenças mentais, e podem dar ocasião ao suicídio. A falta de desabafo faz mal à alma e ao corpo. Não só ao sistema nervoso, mas aos sistemas circulatório, respiratório e digestivo. O desabafo é uma necessidade e uma possibilidade.
É uma possibilidade porque a Bíblia está cheia de desabafos. Dois livros do Velho Testamento — Jó e Salmos — tratam quase exclusivamente de desabafos. Algumas passagens trazem um insistente convite ao desabafo: "Confiai nele, ó povo, em todo tempo; derramai perante Ele o vosso coração: Deus é o nosso refúgio" (Sl 62.8); "Levanta-te, clama de noite no princípio das vigílias; derrama o teu coração como água perante o Senhor; levanta a Ele as tuas mãos, pela vida de teus filhinhos, que desfalecem de fome à entrada de todas as ruas" (Lm 2.19); "Vinde a mim todos os que estais cansados e sobrecarregados, e Eu vos aliviarei" (Mt 11.28). O título do salmo 102 é muito preciso quanto à prática do desabafo: Oração do aflito que, desfalecido, derrama o seu queixume perante o Senhor.
OS PARCEIROS DO DESABAFO
Aqui está uma questão muito séria: com quem desabafar. Não se pode desabafar com as paredes, com os móveis, com os objetos de uso pessoal, xingando, esmurrando, derrubando e quebrando as coisas. É preciso que haja um par de ouvidos para ouvir. Alguns dos amargurados de espírito se contentam com um par de ouvidos que finge que está ouvindo, tal a necessidade de desabafo.
Nesta área há três tipos de desabafo:
1. Desabafo mútuo.
É o desabafo entre marido e mulher, ligados pelo amor e pela carne. Entre pais e filhos, ligados pelo amor e pelo sangue. Entre irmãos na fé, ligados pelo amor e pela crença. Entre amigos, ligados pelo amor e pelo conhecimento. Esses são, ou deveriam ser, os parceiros naturais do desabafo: "Partilhem as dificuldades e problemas uns dos outros, obedecendo dessa forma à ordem do nosso Senhor" (Gl 6.2, BV). Por terem se juntado a ele cerca de 400 homens em situação difícil e amargurados de espírito, Davi deveria ser um excelente ouvidor de desabafos (l Sm 22.2). Ele mesmo, naquela altura da vida, era um exilado político sob constante ameaça de morte.
2. Desabafo clínico.
É o desabafo realizado diante de um conselheiro capacitado, de um ministro religioso, de um psicólogo, psicoterapeuta ou psiquiatra. Trata-se de uma assistência técnica, ora de ordem religiosa, ora de ordem médica, ora de ordem religiosa e médica.
3. Desabafo espiritual.
É o desabafo feito diante de Deus em oração, tão seguro ou mais seguro do que qualquer outro, mesmo sendo um exercício essencialmente místico. De-pende de um certo grau de confiança em Deus e de alguma experiência religiosa, como se vê nesta declaração de Davi quando se escondia de Saul numa caverna de En-Gedi: "Ao Senhor ergo a minha voz e clamo, com a minha voz suplico ao Senhor. Derramo perante Ele a minha queixa, à sua presença exponho a minha tribulação" (Sl 142).
DESABAFO NÃO É PECADO
Não é de estranhar a quantidade e a qualidade de coisas retiradas do coração na prática do desabafo. Quem desabafa precisa falar, precisa ficar solto, precisa ter liberdade. No desabafo, a pessoa está pondo para fora o que estava lá dentro. É possível que diga coisas absurdas, mas é melhor proferir absurdos do que armazenar e multiplicar absurdos na mente. Deus não se ofende quando ouve essas coisas nem pune quem se apresenta diante dele para chorar e queixar-se de sua situação. Em seus momentos mais difíceis, Elias não pediu a Deus a morte? (1 Rs 19.4.) Jonas não fez o mesmo? (Jn 4.3.) No entanto, Deus tratou a ambos com acentuada compreensão.
O exemplo mais dramático de desabafo é o de Jó. Esse homem da terra de Uz, que perdeu todos os bens, todos os filhos, toda a saúde e todos os admiradores, foi muito mais longe que Elias e Jonas. Jó amaldiçoou a noite em que seu pai e sua mãe coabitaram e ele começou a existir, amaldiçoou a gravidez tranquila e sem interrupção da mãe, amaldiçoou o seu dia natalício e os peitos carregados de leite materno que impediram a sua morte ao nascer (Jó 3.1-26). Jó quis morrer, quis parar de sofrer, já não aguentava viver. Daí as perguntas próprias ao seu desabafo: "Por que se concede luz ao miserável, e vida aos amargurados de ânimo, que esperam a morte, e ela não vem"? (Jó 3.20); "Por que esperar se já não tenho forças? por que prolongar a vida se o meu fim é certo?" (Jó 6.11); "Porque, pois, me tiraste da madre? Ah! se eu morresse, antes que olhos nenhuns me vissem!" (Jó 10.18.) Embora não compreendido e repreendido por seus três amigos, Jó é considerado íntegro, reto e temente ao Senhor, aos olhos do próprio Deus (Jó 1.1, 8 e 22; 2.3). O que ajudou Jó a sobreviver foram os seus contínuos desabafos.
O DESABAFO DE ANA
O mais detalhado desabafo da Bíblia é o de Ana, mulher de Elcana e mãe do extraordinário profeta Samuel. Ana tinha uma tremenda desvantagem física — a incapacidade de engravidar, numa época em que não ter filhos era a coisa mais humilhante possível para a mulher casada. A outra esposa (Penina) de seu marido se valia desse problema para a irritar excessivamente. Elcana nada podia fazer. Ana começou a entrar em pânico e tornou-se candidata certa a um desequilíbrio emocional de graves proporções. Ela passou a ter frequentes crises de choro e de anorexia. Então veio a ideia de um desabafo cheio e vigoroso diante de Deus. Aproveitando a visita anual da família a Silo para adorar e sacrificar ao Senhor, Ana permaneceu a sós no templo, onde chorou abundantemente e expôs a Deus o seu drama íntimo. Ela se demorou em orar, destampou a alma, derramando-a em oração, pôs para fora o excesso de sua ansiedade, suplicou a graça da concepção e fez votos ao Senhor. A despeito da desnecessária e infeliz interferência do sacerdote Eli, que a teve por embriagada, Ana, ali mesmo no templo, colheu os benefícios do desabafo; perdeu o semblante triste e recuperou a vontade de se alimentar. Poucas semanas depois, a ausência da menstruação deixou-a convencida de que Deus ouvira também a sua súplica e lhe estava dando um filho (1 Sm 1.1-28).
A história do desabafo de Ana não para aí. É preciso acrescentar que ela engravidou outras cinco vezes e que seu primeiro filho foi um dos mais famosos homens de Deus do Velho Testamento (Jr 15.1), líder do reavivamento que tirou a nação do deplorável estado moral em que foi deixada pela inescrupulosa liderança dos filhos de Eli (l Sm 2.12-7.17).
OUTROS DESABAFOS
Qualquer problema que gera intranquilidade é motivo de desabafo diante de Deus. A carta malcriada e desafiadora que o rei da Assíria enviou para o rei de Judá foi motivo para Ezequias subir à casa do Senhor e estender a carta diante de Deus em oração (2 Rs 19.14-19). Algum tempo depois, o mesmo Ezequias adoeceu de uma enfermidade mortal e voltou à prática do desabafo: ele chorou, orou e reclamou, e Deus ouviu a sua oração, viu as suas lágrimas e restaurou a sua saúde (2 Rs 20.1-11).
No caso de Asafe, chefe da música no tempo de Davi (l Cr 16.4-5) e autor de doze salmos (50 e 73 a 83), o problema foi muito diferente e extremamente grave. Ele teve uma crise de fé tão séria que os seus pés quase se resvalaram e pouco faltou para que se desviassem os seus passos do caminho do Senhor (Sl 73.2). O que o salvou dessa complexa e perigosa crise foi a prática do desabafo. Durante o desabafo no santuário de Deus, Asafe enxergou coisas que não tinha visto antes e recuperou a confiança no Senhor (Sl 73.16-28).
Autor: Elben M. Lenz César
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